Você não é neta das bruxas que não conseguiram queimar
Quando o desencontro é regra e o afeto exige performance. O legado das minhas avós que tive de desaprender. Heranças patriarcais, afetos mal pagos e a difícil arte de ser vulnerável
Eu acho que a galera entendeu errado quando o Vinícius de Moraes disse “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro nessa vida”. Talvez porque a gente fique inebriado com a beleza do verso e o Vinícius seja um sedutor de marca maior. Mas independente se foi droga, amarração, pensamento mágico, infelizmente preciso informar: o desencontro que é o normal na vida.
O famoso cada um pro seu lado (ou alguém que seguiu e se esqueceu de te avisar, distraído, coitado!).
Aí pouco importa se o date foi avassalador, se vocês correram da chuva e ao longe tocava Jigsaw Falling Into Place como se fosse a batida do seu próprio coração. Ou se o cara te pediu em namoro pouco antes de gozar (e você aceitou) ou se você já estava se vendo tomando café da manhã com ele e discutindo política, cinema, livros ou simplesmente imitando o Barbosa do TV Pirata.
E engraçado, não sei se com vocês também é assim, mas eu fico me imaginando sempre fazendo coisas pra outra pessoa. Uma mistura de cozinheira, secretária e boba da corte. Se eu acreditasse em reencarnação, diria que fui uma geisha numa vida passada.
As mulheres hoje enchem a boca pra falar que são filhas e netas das bruxas que o patriarcado não conseguiu queimar… tipo, eu sou neta da Vó Noquinha, cujo noivo a abandonou pra casar com outra. A mesma Vó Noquinha que criou três sobrinhas porque as irmãs se casaram com homens viciados e violentos, mas ficou feliz ao me ver com um anelzinho no dedo anular direito, achando que eu estava noiva… aos 13 anos (por favor, considerem que ela nasceu no século 19 e isso era o normal).
Também sou neta da Vó Chiquita, com quem tive pouco contato porque eu morava no Ceará e ela, em Minas Gerais. Mas como reverberava na minha cabeça todas as histórias que meu pai contava sobre ela.
Era mãe de 16 filhos, mas colocava meu avô em primeiro lugar. Cozinhava, lavava, passava, costurava as roupas da família toda… mas com toda essa faina, conservava o cabelo bem comprido, porque era assim que o vovô gostava. Jamais contradizia uma palavra ou comportamento dele, mesmo que não concordasse. Na hora das refeições, meu avô era servido primeiro, sempre com o melhor pedaço de carne. Depois eram os filhos. Meu pai não se lembra de ter visto minha avó sentada pra comer quando era criança.
Meu pai acha isso lindo até hoje.
E apesar de meu pai sempre ter falado da importância de estudar, de ter independência financeira, tal e coisa, coisa e tal… toda essa mitologia me fazia sentir culpa por não ter todas essas prendas domésticas (que ninguém me ensinou a ter, diga-se de passagem) nem o temperamento suave e recatado cujo modelo contemporâneo são as trad wives.
Quando eu liguei pro meu pai pra falar da minha separação e que fui convidada a me retirar do apartamento onde eu morava, meu pai reagiu como eu já esperava: começou a se encher de raiva do meu ex-marido. Mas como ele não estava presente, ali, descarregou essa raiva em mim, num crescendo, falando alto, certamente com a veia saltada no pescoço do outro lado da linha.
Como eu havia deixado a situação chegar a esse ponto? Por que eu me submeti a esse homem?
Paisinho só não contava que eu também sou filha do meu pai. A coisa chegou num ponto que eu, aos 40 anos, pela primeira vez na minha vida, gritei “Chega!”. Aí cresci pra cima dele, dizendo que se eu havia errado no meu casamento foi em tentar ser como a minha avó, a mãe dele, apoiando, cuidando, tentando levar — mas eu não tinha culpa se o meu ex não se mirou no exemplo dos homens dos Inhamuns (que nem sei se eram essa pipoca toda, mas não podia deixar de passar na cara a contradição).
Isso mesmo, eu dei uma invertida no homem que idealiza a mulher servil.
Não me leve a mal, você também é filha do patriarcado. Nossas mães, avós a bisavós foram criadas nessa estrutura. Romper era tão exceção que ou não chegava aos rincões do mundo, como o interior do Ceará no século 20, ou era prontamente abafado pra não servir de exemplo. E não tô falando isso pra fazer você se sentir mal (os homens já fazem isso com excelência). Em maior ou menor medida, elas reproduziram, sim, mas também romperam com essa estrutura. Do jeito delas, errando, acertando, agindo nas frinchas do possível.
Essa dicotomia santa versus puta só existe pra beneficiar macho escroque, mas o patriarcado soube direitinho injetar essa ideia na cabeça de homens e mulheres, por mais que a gente tente se desconstruir. Como disse a escritora Marion Woodman, carregamos essa sombra em nossos sonhos, expectativas, baseadas no terror de desagradar o papai (ou o substituto do papai).
Já em The Fear of the Feminine, Erich Neumann aponta que a mulher vivencia uma cisão interna ao reconhecer que sua essência contrasta com os valores patriarcais dominantes. E isso enche a mulher de medo — sentimento que persiste até que a gente desenvolva amor próprio e uma consciência capazes de integrar os opostos existentes em nossa psique.
É como se as gerações seguintes precisassem redimir um mal que não fomos nós, mulheres, que causamos. A gente roda, roda e acaba sempre na versão distorcida do versículo bíblico: “A mulher sábia edifica o lar”. Eu só consigo entender: trabalho, sempre mais trabalho. Inclusive o trabalho do afeto, de se fazer interessante e desejável só pra se sentir escolhida por alguém. Daí porque falei da dificuldade do encontro: não pra me queixar do cara X, Y ou Z, mas pra ir além desse sentimento de rejeição. E pra isso você tem que deixar de obcecar com os crushes malsucedidos e encarar suas vulnerabilidades, adentrando lugares mais escuros. Inclusive na escrita.
Se você chegou até aqui, talvez também esteja cansada de tentar ser a mulher que esperam que você seja. Talvez também esteja querendo escrever uma nova história, ainda que entre tropeços, pratos por lavar e fantasmas de vozes antigas.
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curti o texto e, assim, basicamente, é isso aí mesmo, né. mas lembro da história da minha bisavó, Joanna, que foi a primeira mulher a montar a cavalo "que nem homem" na cidade dela, uma perna de cada lado do cavalo. a cidade era Areia/PB. e isso foi no máximo na virada do séc XIX pro XX. ou minha tia Sônia, e sua companheira da vida toda, que viveram até o talo e talvez um pouquinho mais. sua gargalhada. tia Sônia era de 1933, de esquerda raiz, assim como tia Pilar, a companheira. e sofreram as consequências disso.
... teria outras lembranças, mas isso é só pra dizer que, apesar dos pesares, sim, também somos. as netas das bruxas, digo.