"Nunca bata palma pra doido dançar"
Só quero me sentir menos otária, mas calado sempre vence? O ghosting e a dor da história sem fecho. Reações intempestivas e vingança pra uma vida. Hoje eu quero falar de mim
Não bater palma pra doido dançar era uma coisa que o pai da Lucy sempre falava e eu nunca esqueci. Deus sabe o tanto de doido que a gente encarou no jornalismo e na academia, quando éramos jovens adultas com colágeno em dia.
Nos momentos difíceis, sempre recitava esse adágio, pros outros e pra mim mesma. Pensava: não há melhor resposta para os provocadores, os sonsos, os arrogantes.
O silêncio faz com que não saibam se suas ações toscas e desrespeitosas tiveram efeito.
Isso quando não é a única resposta possível, como em relações verticalizadas, muito chefe pra pouco subordinado. Quantas vezes eu não quis dar uma de Jéssica e falar tudo que um chefe merecia ouvir? Só que nesse mundo corporativo, precarizado e provinciano, não dá.
o tal do ghosting
Prova de que o silêncio afeta é o sofrimento causado por um ghosting, em especial nessas relações que se iniciam em apps de relacionamento. Às vezes você nem conheceu a pessoa. Ou teve um ou dois dates, fluidos e recíprocos.
Parecia tudo bem, você controlou sua ansiedade, fez tudo direitinho. Foi ele quem tomou todas as iniciativas que deveria tomar. Aí não mais que de repente ele some, não responde mais, vira fumaça.
Já aconteceu de eu ter um date, o cara seguir conversando por uns dias até que ele solta que estava com suspeita de Covid-19 (estávamos vacinados e muito longe daquele período de quarentena, mas nada é 100%). Aí puft!, duas semanas sem se manifestar.
Comecei a achar que o Covid dele evoluiu a ponto de precisar internar, ficar entubado. Bateu o desespero. Mandei mensagens enormes na esperança de que algum familiar em posse do telefone dele me dissesse o que aconteceu. Nada.
Mesmo já tendo vivido essa experiência nos tempos astecas do offline, com direito a pedido de namoro e passar metade do Natal com a família dele, foi longo e demorado pra cair a ficha: ele me deu um fora na base do “calado vence”
O problema é que as mãos repousadas externamente não implicam uma serenidade interna. Pudera, todas as séries e filmes de massa se sustentam no confronto, físico ou verbal. Já quem dá o ghosting espera que a outra pessoa entenda o sinal, evitando o conflito. O anonimato da internet sustenta o encontro e o desencontro, mas não o desamparo das expectativas frustradas, da história sem fecho. Pesquisas científicas mostram que isso machuca mais do que a certeza da dor.
melhor calar?
Hoje eu penso diferente em relação ao “calado vence”. Queria ter falado mais. E tido mais equilíbrio ao escolher a hora de falar e a hora de estar calada. Tenho essa falha de formação, intelectual e espiritual. Faltou à minha geração umas boas aulas de retórica e argumentação. Faltou-me, em particular, pais e entorno menos avessos ao conflito.
Não estou a fazer psicanálise de botequim, tenho horror a isso. Nossos pais só podem dar o que têm.
Há muitos anos, um primo do meu pai estava numa festa do interior deles com a noiva. Os irmãos de uma família graúda começaram a mexer com a moça e quando ele foi tirar satisfação deram uma rasteira nele. Riram dele. O casal saiu da festa, o primo levou a noiva até em casa. Pouco tempo depois, começaram a ouvir gritos do lado de fora da festa. Era o primo chamando os valentões: “Vem aqui se tu é homem!”.
Eles saíram em grupo, tavam bem dispostos a dar uma surra no atrevido. Um a um, levaram balaço da papo-amarelo que o primo sabia manejar como um sniper. Nem tiveram tempo de recuar. Não sei quem morreu ou se feriu, mas um deles acabou numa cadeira de rodas.
O primo passou o resto da vida fugindo, jurado de morte por essa família. Não tinha pouso nem sossego, escapou de umas boas emboscadas. Até que um dia ele cansou, se estabeleceu numa cidade, iniciou uma família, na esperança de ter sido esquecido. Dois anos depois ele cometeu o erro de ir a um bar e ficar de costas pra porta. Um cara veio por trás e deu-lhe um tiro na nuca.
Meu pai não estava na cidadezinha deles quando tudo aconteceu. Não é questão de arrependimento, nem era o caso. Sinto que uma parte dele lamenta não estar lá, porque teria feito de tudo para demovê-lo daquela vingança. Conversar até o primo esfriar a cabeça, tomar ou esconder o rifle, ameaçar chamar Madrinha, mãe dele, que estava na fazenda. Foi uma reação estúpida e além da conta.
bem no meio da canela
Essa aversão ao conflito ecoou fundo na nossa criação. Era lei entre nós nunca começar uma briga; xingar ou insultar era impensável. Mas se fosse o contrário, por incrível que pareça, a regra era “bateu, levou; xingou, xingue também”. Bem proporcional. Problema é que sempre me senti mal em brigar, mesmo que fosse pra me defender.
Desde os três anos, eu usava botas ortopédicas e um elástico enrolado nas pernas pra corrigir a falta de cava. E um coleguinha sempre botava a perna pra me fazer tropeçar, o que era ao mesmo tempo doloroso e humilhante.
As tias não faziam nada porque o moleque era filho de gerente de banco, num tempo em que esse era um dos grandes de cidade do interior, junto com o prefeito e o juiz. Foi preciso que meu pai, que até hoje tem horror a briga e grito, dissesse o passo a passo do que fazer.
Naquele dia, acabei na coordenação por ter dado um chute bem no meio da canela do coleguinha com a minha Ortopé de sola metálica. A coordenadora e as tias fizeram de tudo pra me arrancar uma confissão, mas banquei o futuro espírito de suspeito de Law and Order e disse que só falava na presença do meu advogado pai. Foi o que ele me disse pra fazer.
Quando meu pai chegou, escatitou a coordenadora. Disse que a mensalidade que ele pagava valia o mesmo que a do pai do meu coleguinha. Enquanto só eu apanhava era “coisa de criança”. Só virou problema quando eu revidei. Daí ele deixou claro: bati a mando do meu pai, pra me defender, e tinha ordens de bater de novo em qualquer um que implicasse fisicamente comigo. Outras coisas aconteceram do que hoje se chama bullying, mas ainda hoje vivo nessa incerteza pendular
saindo das cordas do ringue
Hoje, depois de muita encurralada no corner, trago os freios introjetados no corpo, as retinas cansadas e a dor literalmente à flor da pele. Me vejo quase sempre sem energia ou disposição, sequer pra desviar da possibilidade do soco.
Mas sempre é tempo de falar. Ou escrever.
Por isso me permiti, nesta edição da newsletter, ser menos cerebral, menos generalista. Falar coisas não muito agradáveis ou lisonjeiras. Dizer do outro diz muito mais de mim, do meu lugar e das minhas escolhas. É a minha forma de exorcizar fantasmas que atravessam a minha mente nas ansiedades.
Deixe que digam que é coisa de interioridade burguesa, que é algo recente em termos históricos, que não vai reverberar no futuro. Minhas pretensões não vão além desta vida e da necessidade de acalmar meu espírito aqui e agora. Mesmo à custa da solidão, da separação de quem se acostumou a me ver assentindo toda vez que dizia “por favor, não vá falar sobre isso”, preciso descobrir a minha voz.
Vou bater palma pra minha própria dança.
Prazeroso ler seu texto... e toca fundo numa questão do meu dia-a-dia. Sempre fui sambista quando o assunto é percussão pra doido, reativo e impulsivo. Se me arrependo? Sim. Tiro prazer disso? Muito. Estou nessa de sambar e eu mesmo me aplaudir.